Se você odiasse o que faz, ainda faria bem-feito?

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Neste texto, vou falar sobre filosofia, mitologia grega, mitologia japonesa, futebol, basquete e programação. Este pequeno preâmbulo se faz necessário, já que, por vezes, irá parecer que estou divagando muito, mas confie em mim e vá até o fim. Não lhe prometo um bom desfecho, mas um fim. Sendo Nelson Rodrigues meu exemplo de cronista, esforço-me não para convencê-lo ou entretê-lo, mas para existir em conflito.

A filosofia absurdista é, de longe, a minha favorita. O meme com a reação de quatro filósofos ao fato de que vão morrer no futuro me define bem.

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Mas não só por isso. Camus, em seu ensaio, descreve um herói do mundo moderno: um homem que existe no hoje sobre as cinzas do que queimou ontem. O mito de Sísifo é bem conhecido: ele foi amaldiçoado por Zeus a rolar uma pedra morro acima para lançá-la do outro lado. Porém, a inclinação da montanha e as dimensões da pedra são tais que, quando ele chega ao topo, suas forças se esgotam, ele a solta, e a pedra rola montanha abaixo. Os castigos infernais na Grécia Antiga seguiam um padrão bem peculiar: eram sempre tarefas inúteis, na melhor definição, como tecer uma corda enquanto um asno come o resultado do seu trabalho ou encher um balde furado. (O mais engraçado é que Sísifo recebe essa punição por denunciar um adultério e por fugir da morte como punição por tal denúncia, mas isso se torna um questionamento para outra hora.)

Camus, então, nos convida a imaginar Sísifo em um pequeno momento, aquele que justifica tudo: o instante em que suas forças acabam e ele vê a pedra rolar para a base da montanha. Nesse momento, se imaginarmos Sísifo feliz, o herói se constrói à nossa frente. É aquele que olha para o absurdo da vida e manda um “FODA-SE” de todo tamanho, encontrando em meio ao caos não um sentido próprio — pois isso é infantil demais —, mas forças para tratar tudo isso como um ato de rebeldia contra si e contra os seus algozes.

Penso no que gostaria de perguntar a esse universo caótico, que às vezes parece nos lançar maldições desse tipo, se pudéssemos colocá-lo em uma entrevista. Não uma com câmeras, microfones e um set montado, mas em um terreno baldio, com talvez uma ou outra cabra vadia por ali, onde perguntas escusas são de fato feitas e respostas sujas são obtidas. Eu perguntaria: como ele acha que existe tamanha criatividade humana para burlar a desgraça e o caos? Seria esse um relacionamento como o de um pai com seu filho adolescente?

Isso pode parecer complicado de se entender no campo dos ensaístas, filósofos e psicólogos. Sim, esses “nerds” sabem das coisas. Mas uma visão sobre a rebeldia contra o trabalho inútil não é nada senão uma rebeldia contra si próprio. E agora, entro em dois exemplos reais. Gareth Bale, um grande jogador de futebol, disse publicamente que o futebol não era seu esporte favorito e que, se pudesse escolher, estaria jogando golfe. Em um esporte pelo qual tenho mais interesse, Nikola Jokic, um jogador de basquete e um dos melhores de sua geração, disse que não gostava de jogar basquete, mas o fazia por ser sua profissão, sentindo-se mais feliz na Sérvia, assistindo a corridas de cavalos. Tenho certeza de que grandes jogadores de outros esportes têm essa mesma sensação com uma modalidade que, para eles, nada mais é do que trabalho.

Veja só: como podem dois atletas ser tão bons em esportes ou tarefas que não amam de paixão?

Sempre detestei um tipo de programador: aquele cuja personalidade inteira se resume a isso. O que ele fala, o que consome, o que produz. Sísifo não é apenas um homem que carrega uma pedra. O programador-personagem é alguém raso, alguém que apenas se preocupa em empurrar uma pedra, e isso não o torna bom, porque ele comete o erro fundamental de se apaixonar por ela. Sísifo, o herói de Camus, só encontra sua liberdade porque odeia a pedra. Sua grandeza não está no ato de empurrar, mas na consciência que ele adquire na descida, no momento em que está livre dela, olhando-a de cima, entendendo a futilidade de tudo. É nesse respiro, nesse distanciamento, que nascem a clareza e a rebeldia. O programador-personagem não tem a descida. Ele vive no morro, dorme abraçado à sua pedra de código e acha que isso é virtude. Ele elimina o espaço para a reflexão, para a criatividade que vem de outras fontes – da arte, do esporte, de uma conversa fiada num bar. Sem esse respiro, suas soluções se tornam repetitivas, endogâmicas. Ele resolve problemas de programação com mais programação, num loop infinito que o cega para soluções mais simples e elegantes que talvez estivessem numa partida de golfe, como diria Bale.

Porque a verdadeira maestria não nasce da paixão, mas de uma disciplina quase rancorosa. Nikola Jokic não precisa amar o basquete para executar um step-back perfeito sob pressão. Sua excelência é um ato de vontade, de técnica refinada à exaustão, uma rebeldia contra a mediocridade. É a perfeição pela perfeição. O programador-personagem confunde a profissão com um clube do livro. Ele não busca a maestria da ferramenta, mas a validação de pertencer ao grupo. Seu código é cheio de floreios da “linguagem da moda”, seu GitHub é um palco para exibir sua identidade, não para resolver um problema de forma sólida. Ele é um amador perpétuo, pois sua motivação é o amor pela persona, não o domínio sobre a tarefa. Sísifo não se exibe para os outros deuses enquanto carrega seu fardo; seu conflito é interno, silencioso e, por isso mesmo, mais digno.

Nosso programador-personagem comete o erro de acreditar que sua existência é o seu trabalho. E aqui a mitologia japonesa nos oferece o espelho perfeito para essa falha, na lenda de Tanabata. A história de Orihime, a Tecelã, e Hikoboshi, o Pastor, não é sobre preguiça, mas sobre uma revelação. Antes de se encontrarem, eles eram suas funções. Eram definidos por elas. Mas, ao se conhecerem, aconteceu o impensável: eles perceberam que só existiam de verdade fora do trabalho, um com o outro. A identidade deles não estava nos tecidos celestiais ou no rebanho divino, mas na conexão humana que compartilhavam. O amor não foi uma distração do trabalho; foi a descoberta da própria vida. Seu “pecado”, aos olhos dos deuses, foi precisamente este: ousar ter uma identidade independente de sua utilidade. A punição – serem separados pela Via Láctea – foi uma tentativa de forçá-los de volta às suas funções, de lembrá-los que eles são apenas vazios.

O programador-personagem é a antítese trágica disso. Ele não precisa de um deus para puni-lo, pois ele mesmo se condena. Ele faz a escolha oposta à de Orihime e Hikoboshi: em vez de descobrir que existe fora do trabalho, ele se convence de que só existe dentro dele. Ele voluntariamente apaga qualquer identidade que não seja a de “programador”. Os amantes foram separados por um rio de estrelas. O programador-personagem cria sua própria Via Láctea. E há quem escolha construir essa distância de bom grado, como uma mentira contada por muito tempo, tornando-a uma barreira intransponível entre um teclado e o resto do mundo, entre uma função e a vida que pulsa do outro lado. Uma humanidade da qual, um dia, eu também fiz parte.

A lenda não era sobre estrelas; era sobre o perigo de esquecer por que se vive.

Então, aqui vai a pergunta cuja resposta pouco me importa: você seria bom no que faz se precisasse aceitar que isso não é você? Se fosse apenas uma parte do que precisa fazer para ter a oportunidade de viver outras coisas? Se fosse mantido apenas pela constância, disciplina, responsabilidade e dedicação, você sorriria diante do caos ou precisaria mentir para si próprio?


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